Nota:
No capítulo anterior do livro “Fundamentos da Educação Reformada” tratamos da epistemologia cristã e tentamos esboçar os pontos principais de uma teoria do conhecimento que reflita os pressupostos bíblicos. Esse capítulo, sobre os “Elementos da Educação”, consiste numa transição entre a teoria da educação cristã e seus aspectos e elementos mais práticos. Na realidade, daqui para frente, você poderá perceber com mais clareza como os princípios bíblicos que já tratamos sobre Deus, a Bíblia, o homem e o conhecimento se aplicam à nossa definição e práticas de educação e de escola cristã, de ensino e de aprendizagem, à metodologia de ensino, às competências do professor, ao perfil do aluno, às práticas disciplinares e aos níveis de ensino. E o próximo capítulo irá aplicar esses princípios às diversas disciplinas do currículo cristão.
Capítulo 9
Elementos da Educação Reformada
9.1. A Educação e a Escola Reformada: Buscando uma Definição
A definição de educação reformada não se detém num ou noutro aspecto como o currículo, as práticas da escola, as metodologias adotadas ou mesmo um ou outro propósito bíblico, mas adota um conceito abrangente e fornecedor de sua essência. O que define a essência da educação reformada é a existência de uma cosmovisão ou mentalidade bíblico-reformada que domina todas as demais práticas da escola cristã. Essa mentalidade consiste na união e na aplicação da teologia reformada à educação.
É assim que Solano Portela ([199-], p. 2-4) busca uma definição que leva em conta as concepções teológicas definidoras de uma mentalidade bíblica. Assim, ele define a educação cristã reformada como:
(…) o processo de comunicação de conhecimento e de treinamento dos dons naturais de uma pessoa que se baseia nos seguintes fatos: 1. O homem não é um ser neutro, nem um produto do meio, mas já nasce submerso em pecado, com a inclinação para o mal. Ele deve, portanto, ser submetido à correção e à disciplina (…) 2. Deus criou o homem para servi-Lo e cada pessoa deve ser encaminhada desde os primeiros passos com este propósito, dentro dos seus talentos naturais, adquirindo cada vez mais uma conscientização de sua finalidade de servir a Deus na terra, qualquer que seja o campo de trabalho ou ocupação que venha a operar (…) 3. O Homem é um ser religioso e o conhecimento por ele adquirido sempre será interpretado e recebido dentro deste contexto religioso. Para ser um conhecimento legítimo deve, portanto, proceder do ponto de vista bíblico, fornecendo assim, ao homem, uma visão integradora e correta da vida e da criação (…) 4. Todo ensinamento ministrado pelo mundo traz em si, em maior ou menor grau, filosofias anticristãs que direcionam o homem contra Deus. (…) Educação Cristã verdadeira, dentro desta definição, não é aquela que simplesmente insere a Bíblia no currículo, mas, sim, a que reestuda todas as disciplinas, apresentando-as biblicamente, como procedendo do Deus soberano.
Para não se estender numa definição que é simples, basta deixar claro o aspecto central que Portela buscou enfatizar, qual seja, que esta é uma educação que se fundamenta numa mentalidade formada por pressupostos bíblicos-reformados, de maneira que essa mentalidade cristã controla toda a filosofia, planejamentos e demais atividades da escola, seja o ensino, a determinação do currículo, a admissão do corpo docente, a metodologia utilizada, e assim por diante.
Assim, a aplicação dessa definição de Educação Reformada no âmbito prático, local e institucional leva à definição de “escola reformada”. O que significa dizer que uma determinada escola é de fato cristã e reformada? É primeiramente necessário desfazer algumas concepções errôneas que se têm da escola cristã. Esta:
· Não é uma escola que inclui no seu currículo disciplinas que tratem da Bíblia ou de temas do cristianismo.
· Não é uma escola equipada com professores evangélicos.
· Não é a escola que providencia para os alunos serviços de capelania, devocionais e cultinho, (o que aliás, não é função sua, mas da Igreja e do lar).
· Não são aquelas escolas ligadas a Igrejas ou denominações evangélicas.
· Não é uma escola que aplique regras evangélicas de conduta e valorize a disciplina e o bom comportamento.
· Não é uma escola marcada pela valorização da moral cristã.
Essas coisas, de maneira geral, embora necessárias, numa escola cristã, não são definidoras de uma escola cristã reformada. Para isso, é necessário que a escola possua uma característica marcante que vai além dessas práticas. Pode-se adentrar na natureza essencial da escola cristã reformada utilizando a definição de Augustus Nicodemus Lopes:
A escola cristã é aquela que oferece um processo de treinamento e desenvolvimento da pessoa e de seus dons naturais à luz da perspectiva cristã da vida, da realidade, do mundo e do homem. Isso significa o desenvolvimento de um currículo e um programa educacional onde as disciplinas e atividades reflitam explicitamente a mentalidade cristã. Em outras palavras, escola cristã é aquela que ensina ciências, história, comunicação, sociologia, etc. a partir dos pressupostos cristãos. É adotar teorias e filosofias de desenvolvimento humano e da educação que reflitam o ensino bíblico sobre o homem como imagem de Deus, embora moral e espiritualmente decaído. (…).
Uma escola cristã, portanto, é aquela que trata todas as áreas do conhecimento (ciências humanas, exatas, naturais, sociais, comunicação, etc.) a partir de uma mentalidade cristã, formada pelo ensino bíblico. É a integração de educação e teologia no ensino, desde o primário até o superior (2003, p. 51)
Ou, como definiu Paulo Anglada:
(…) uma escola que se fundamenta em pressupostos bíblico-reformados, governada por uma cosmovisão ou mentalidade genuinamente cristã e cuja estrutura organizacional, práticas pedagógicas, normas disciplinares, ensino, escolha de professores e funcionários e currículo reflitam essa mentalidade cristã.” (ANGLADA, 2002, p.1).
9.2 Ensino e Aprendizagem
De conformidade com a pedagogia reformada, ensinar é transmitir ou ajudar na transmissão de um corpo de verdades a outrem e aprender significa compreender intelectualmente essas verdades, de maneira que estas se reflitam e transformem a vida prática produzindo frutos bíblicos. Resta, então, saber como ensinar biblicamente.
James Beeke [2003?] buscou essa resposta no ensino e nos métodos de ensino utilizados pelo mestre maior da cristandade, Jesus Cristo, e identificou, no seu ministério, pelo menos 8 métodos que usou para transmitir as verdades que desejava ensinar.
Um desses métodos é o de fazer perguntas. “Os evangelhos contém mais de cem perguntas feitas por Jesus durante seu ministério de ensino na terra” (BEEKE, [2003?], p. 232). Essas perguntas eram propositais e bem pensadas, destinadas a atrair a atenção dos ouvintes, a fazê-los pensar numa solução, de maneira que a sequência das perguntas deveria conduzir os ouvintes à verdade. Não eram perguntas soltas, mas direcionadas ao ensino e ao conhecimento. O ensino reformado se beneficiaria muito deste método, se, seguindo o exemplo de Cristo, o professor começasse a aula com perguntas que estimulam o pensamento e despertam a atenção, como: “As pessoas precisam aprender a multiplicar?”; “O que faz os pássaros voarem?” “Por que o Brasil é um país pobre?”
Jesus ensinou também através da exposição oral ou do discurso. O sermão do monte é um exemplo de um discurso bem-organizado e poderoso. A fala é direcionada não a apresentar as habilidades do professor, nem apenas para manter os alunos ocupados anotando, mas tem o objetivo de fazer os alunos entenderem e gravarem em seus corações verdades fundamentais.
Um dos métodos mais marcantes do ensino de Jesus foi o de contar histórias ou parábolas. Os Evangelhos relacionam 40 milagres e 40 parábolas que Jesus contou, tanto para introduzir, quanto para finalizar um assunto, ou para ensinar a verdade principal, como na parábola do filho pródigo. As vantagens das histórias para o ensino é que elas “geram interesse, deixam mais claras verdades abstratas e ajudam a reter os pontos centrais da mensagem” (BEEKE, [2003?], p. 233)
A discussão, o debate ou o diálogo também era um método de ensino utilizado pelo Mestre. Seja com a mulher samaritana, com o jovem rico, com Nicodemus ou com os apóstolos, a conversa encorajava os ouvintes a pensar, a expressar seus pensamentos, a se envolverem ativamente no processo de aprendizagem e a compreenderem melhor as verdades.
Jesus ensinou também pelo exemplo. Imaginemos o quanto os discípulos devem ter aprendido sobre a verdadeira humildade na ocasião em que Jesus tomou uma bacia e uma toalha, ajoelhou-se e passou a lavar os pés dos discípulos. O ver como se faz, aprender fazendo, tentando e experimentando é um método de ensino muito poderoso, como assegura Beeke ([2003?], p. 234).
Cristo ainda ensinou a seus discípulos pedindo que lhe fizessem um relatório de suas ações, e do que observaram. Na ocasião em que ele comissionou 70 discípulos e os enviou para pregar, ao regressarem, Jesus pediu que contassem tudo o que haviam feito e vivido. Mas Beeke alerta para a necessidade de que esse ensino seja dirigido. Jesus equipou os discípulos com um ensino consistente voltado para as tarefas que deveriam realizar e lhes deu claras instruções antes de partirem sobre o que levar, o que fazer, onde ir, e como deveriam se conduzir, tudo de maneira realista. Ele não simplesmente deu uma tarefa, e deixou os discípulos sem rumo, como o fazem muitos professores atualmente.
No ensino de Jesus, é possível perceber que ele buscava sempre ir do concreto para o abstrato, partindo de objetos materiais como a figueira, a moeda com a esfinge de César, a criança, os sacramentos que Ele instituiu, o batismo e a ceia. Isso aponta para a importância de o ensino cristão partir de exemplos concretos, de situações reais.
Beeke ainda lembra que Jesus usava sempre um método de ensino individualizado. Suas palavras, os conteúdos do seu ensino eram feitos sob-medida para as necessidades e o perfil de cada ouvinte. Ele usava métodos diferentes para curar os diversos doentes, ele parava na multidão para atender pessoas individualmente.
A Bíblia também enfatiza o ensino como discipulado, no sentido de que tudo o que é ensinado por palavras deve também ser observado e seguido pelo exemplo. Por isso o professor tem um papel importantíssimo na educação cristã reformada. Ele deve ser modelo de tudo o que ensina. As atitudes que ele espera de seus alunos (dedicação, compromisso com a aprendizagem, respeito, organização, pontualidade, amor, etc.) devem ser vistas primeiramente nele. O ensino cristão deve ser consistente e honesto, nunca hipócrita.
E finalmente, o sucesso do processo de ensino e de aprendizagem cristão depende da consciência da presença de Deus em todas as áreas da vida e do ensino. Tudo deve ser feito para Deus, na dependência de Deus, na consciência de que esse processo está se dando às vistas de Deus, como serviço a Ele, e para capacitar os alunos a servi-lo em tudo o que fizerem. E para isso, tanto o professor como o aluno precisam ser humildes o suficiente para reconhecer que só vão conseguir ensinar ou aprender se Deus os auxiliar a cada instante, dando as palavras certas, capacitando-os a pensarem e a agirem da melhor forma possível e iluminando as mentes e corações para o entendimento das verdades de Deus.
9.3 O Professor Reformado
Uma das dificuldades que enfrenta uma escola que deseje ser genuinamente reformada é a dificuldade de se conseguir um corpo de professores bem preparado nos requisitos essenciais de (1) possuírem um conhecimento profundo do assunto que ensinam, (2) possuírem uma formação teológica bem fundamentada na teologia bíblica e na cosmovisão reformada, e (3) serem capazes de unir esses dois conhecimentos em seu ensino e em sua prática e vida.
Essas competências do educador são necessárias considerando que a educação reformada e o ensino das diversas disciplinas e assuntos a partir de uma ótica bíblica não é algo fácil de ser obtido, ou que pode ser lido num livro qualquer à disposição dos professores, mas é algo, em muitos casos, novo, e que precisa ser elaborado, pensado e aplicado por cada professor cristão. De acordo com Jay Adams (1982, p. 71), os professores “precisam ser bons em teologia, em relacioná-la à educação em todos os níveis e devem saber o que num currículo é diretamente prescrito pelas escrituras e quais os meios e instrumentos devem ser inventados de maneira consistente com as pressuposições, preceitos e princípios bíblicos.”
Dentre as competências e habilidades indispensáveis ao educador reformado estão:
· Deve ser um pensador, capaz de pensar “pressuposicionalmente”, não pragmaticamente no que diz respeito à elaboração de teorias, práticas e metodologias que esteja de acordo com a cosmovisão reformada.
· Deve ter a habilidade de explicar o assunto de maneira que as crianças venham a entender a verdade. Explicar aqui é entendido como dividir o material em pequenos passos (WEEKS, 1998), expor um determinado assunto em várias etapas, isolando partes do problema e ensinando-as seqüencialmente, ilustrando, repetindo, e ensinando-as a memorizar o que for útil e necessário para lembrança posterior.
· Deve saber motivar as crianças com os incentivos corretos. O incentivo que deve ser mais usado é o esclarecimento à criança do seu dever para com Deus, ensinando-a que tudo o que ela faz deve ser com dedicação e qualidade, pois constitui um serviço a Deus. O outro tipo de motivação lícito é fazer com que as crianças vejam o resultado de seu trabalho.
· O professor naturalmente está em posição de destaque e de imitação e por isso deve ser um bom exemplo de vida e de aplicação do conteúdo para seus alunos, a fim de que estes percebam como o que o professor ensina se reflete na sua própria vida e atitudes. James Beeke ([2003?], p. 237) escreveu que “as crianças aprendem um pouco daquilo que dizemos, um pouco mais daquilo que fazemos e muito mais daquilo que somos”. Weeks (1998) também reconhece o fato de que a posição de professor é uma posição delicada: “Durante todo tempo que um professor está ensinando, ele está sob avaliação. Seu caráter é analisado, sua coerência é examinada, suas inconsistências são provadas. É por isso que ensinar é um teste de caráter. O professor dá ordens e exige tarefas. Aqueles que estão sob suas ordens reagirão a qualquer sinal de hipocrisia” (p. 67)
· O professor deve ser sábio, maduro e firme na aplicação da disciplina, apresentando, de certa forma, as características de pais, que sabem disciplinar com constância, seriedade e amor.
· Deve reconhecer os seus dons e vocação para trabalhar com o ensino de crianças e deve lutar contra suas dificuldades pessoais, dentre as quais Weeks relaciona (1998, p. 71-74) a falta de organização e disciplina, a estagnação acadêmica e espiritual e a falta de autoridade natural.
· Os professores devem ainda ensinar com uma sincera consciência da presença de Deus, de estarem sendo usados no serviço de Deus e de sua dependência em relação a Ele.
· Em termos mais práticos e pessoais, as características desse professor são descritas por Adams, (p. 1982, 95):
O novo professor será uma pessoa viva e dinâmica que sabe lidar com os próprios pecados da maneira que Deus requer, que não hesita em admitir seus erros aos alunos e pedir seu perdão, que cresce por cada experiência desse tipo e sabe como e quando (e quando não) compartilhar suas próprias provações e as soluções de Deus para elas com os alunos. Ele está vitalmente preocupado em agradar a Cristo, é um sério estudioso da Bíblia, é uma pessoa de oração e é dependente do Espírito Santo em seu ensino. Em suma, ele é dedicado a ajudar os alunos a crescer em conhecimento, na vida e no ministério.
9. 4. Perfil do Aluno na Escola Reformada
A maioria parece concordar que o ideal seria que todos os alunos da escola cristã fossem filhos de pais crentes e compromissados com a fé reformada e com a educação de seus filhos. Entretanto, esse permanece um ideal, pois dificilmente a escola está inserida em uma comunidade apenas de crentes reformados. Nem a igreja está livre de crentes professos, cuja vida acaba demonstrando que nunca tiveram o seu coração convertido por Deus. Não cabe nem à igreja, nem à escola julgar o coração. Ainda reconhecendo esta dificuldade, há posições divergentes.
Num dos extremos, está a posição defendida pelo Prof. David Engelsma (1995. Não paginado), no artigo The Covenant Basis of Christian Education. Fundamentando sua filosofia educacional no conceito bíblico do pacto ou da aliança, Engelsma acredita que a escola cristã
(…) é para as crianças do pacto. Crianças fora da aliança não deveriam ser aceitas, ou seja, filhos de pais descrentes. Em meu parecer, deveríamos aceitar crianças de fora das Igrejas Reformadas Protestantes, e até mesmo de fora das denominações reformadas, mas apenas na condição de que os pais evidenciem verdadeira fé em Cristo e estejam motivados pelo desejo de que seus filhos tenham uma educação cristã.
Ele vai além, entretanto, em sua posição, e enfatiza um outro aspecto: de que a educação cristã é para todos os membros da igreja local, e que por isso não se pode admitir uma escola que tenha práticas excludentes em termos econômicos, políticos, de classe social, raça, ou nenhuma outra forma. Sendo filhos de pais crentes, a escola deve estar de braços abertos para receber qualquer criança e acolhê-la propriamente. Isso significa que:
Essa não é uma escola apenas para os alunos brilhantes ou que são aptos para adentrar na universidade. O caráter pactual da escola demanda que seja dada atenção especial aos alunos que poderiam ser considerados de um nível inferior. No Reino de Deus, a lei é que “prestemos mais honra” aos membros “mais indignos” do corpo (I Co. 12:23). (ENGELSMA, 1995. Não paginado)
E Engelsma prossegue perguntando seriamente, aplicando este princípio a situações e práticas cotidianas:
As nossas escolas são, de fato, para todas as crianças? Ou as instruções, a pressão das tarefas, a avaliação, e mesmo a atitude do professor são tais que alguns, talvez uma percentagem considerável são virtualmente excluídos? Em nossos padrões e procedimentos, ou talvez em nossa adesão aos padrões do governo, estamos sendo verdadeiros para com a base, o pacto de Deus, especificamente em Sua exigência de atendermos a todas as crianças? (ENGELSMA, 1995. Não paginado)
Esta posição se reflete também na atitude para com os alunos da escola. Se eles são vistos como membros do pacto e filhos da aliança, é correto que o professor os trate como tais, e espere que se comportem como tais. Serão vistos como pecadores caídos, mas que estão sendo santificados em Cristo, embora essa santificação não seja perfeita. Como implicação dessa visão temos a ênfase na disciplina firme e apropriada.
Mas como ficam todas as demais crianças, que não são filhos de pais crentes? Elas não merecem uma educação? Decerto que sim, e desde Lutero, essa responsabilidade pela educação como bem e necessidade comum foi colocada sobre o Estado. É verdade que Lutero, ao propor uma educação para todos, tinha em mente uma educação reformada, e, sem discernir a diferença essencial entre Igreja e Estado, imaginou que o Estado poderia ser um suporte apropriado para a Igreja Reformada em sua missão educativa. Contudo, embora no tempo da Reforma uma espécie de teocracia tenha sido vista em alguns países em que governantes cristãos alcançaram o governo político, (como foi o caso de Calvino em Genebra), é evidente que essa condição de relação Igreja-Estado no que se refere à educação reformada se mostrou totalmente inviável na história subseqüente. E a escola reformada estatal proposta por Lutero não pôde ser adequadamente estabelecida exatamente pela falta de verdadeiro compromisso de seus mantenedores, dos educadores e dos pais com a fé e com a aplicação da fé reformada à educação.
Ainda assim, de modo mais amplo, não é possível dizer que o intento de Lutero com a difusão da educação pública para todos foi frustrado. Na pior das hipóteses, a educação secular se torna válida ao menos porque alfabetiza as pessoas, e essa alfabetização dá à pessoa a condição básica de ler a Bíblia, com o que pode vir a ser iluminada e salva. Não se está aqui duvidando de que a educação secular tenha alguma utilidade no desenvolvimento cultural de um povo.
A questão mais difícil de ser solucionada é quanto à relação entre a escola cristã-reformada e as pessoas que não têm compromisso com a fé reformada. Por exemplo, que atitude deve tomar a escola reformada quando pais não-cristãos desejam colocar seus filhos ali? Isso pode acontecer com famílias que são vizinhas dessa escola. Ou com pessoas que são apenas “admiradoras” da conduta cristã, ou com pais que querem ver seus filhos numa escola conhecida por prezar pela disciplina e por valores morais, e, num caso bem mais complexo, com pais que professam a fé cristã, sendo membros de uma congregação evangélica, mas que nunca tiveram seu coração de fato transformado pela graça de Deus. Em que bases a escola poderia negar a admissão de um destes alunos? E como poderia aceita-los sob as bases pactuais já demonstradas?
Noel Weeks, em seu livro The Christian School, “A Escola Cristã”, trata exatamente dessa discussão sob o tópico: a escola e o lar ruim (1998, p. 11 e ss.). Para ele, o lar ruim, entendido como o lar que não reflete os princípios da Palavra de Deus, é uma realidade mesmo na escola cristã reformada. Muitas vezes, os pais são novos convertidos que não têm uma base doutrinária sólida e não disciplinam adequadamente os filhos em casa. Essa falta de disciplina repercutirá na escola, sem dúvida. Mas ele responde que a escola, nesse caso, terá o papel de suplementar a educação do lar, e de fornecer os bons exemplos, no caso, de disciplina, que os pais estão falhando em dar.
Mais adiante no livro, o autor fala diretamente das famílias não-cristãs. Ele levanta a hipótese de haver vagas e de haver pais não cristãos querendo colocar seus filhos na escola cristã. Ora, certamente, haveríamos de considerar um outro lado, o lado do amor cristão pelas almas. A escola cristã poderia bem ser um meio de bênção para a criança e para seus pais, pois ali certamente, a criança aprenderia sobre as verdades da Palavra de Deus, e seria apresentada a um modelo bíblico de relacionamento pessoal, de disciplina, etc. Assim como a Igreja não rejeita o maior pecador que ali adentre em busca de arrependimento e de ensino verdadeiro da Palavra, embora esteja autorizada a disciplinar e mesmo excomungar pessoas que deliberadamente rejeitam a Palavra de Deus e a disciplina eclesiástica, assim também parece que na escola se aplicaria um princípio semelhante. Assim como o povo de Israel, embora sendo uma comunidade separada por Deus e chamada Seu povo, não deveria negar abrigo aos prosélitos do judaísmo, isso poderia indicar que a escola cristã deveria ter a destra estendida para receber essas crianças filhas de pais ímpios.
Se este for o caso, e se a escola cristã achar que deveria receber também filhos de pais não-crentes, ela terá que se deparar com um conjunto a mais de possíveis dificuldades que precisarão ser devidamente pensadas e tratadas. Weeks prevê que a presença desses pais e dessas crianças na escola criará problemas e situações complicadas que demandam especial atenção dos educadores, de modo que “precisamos planejar para lidar com elas” (1998, p. 98). Como alguns desses problemas o autor cita os mal-entendidos, a questão do controle da escola, o conflito de bases e valores diferentes, a não-aceitação de práticas bíblicas como a disciplina e a conduta inadequada dos pais, dentre outros, e sugere que a estratégia para que sejam evitados e resolvidos é a honestidade em tudo e o diálogo aberto, desde antes da criança ser matriculada na escola:
Em primeiro lugar, ela deve ser honesta. Se o problema da criança é devido, ao menos em parte, aos problemas dos pais, os pais precisam saber disso. Pessoas que querem uma escola que apenas tome conta de seus filhos, mas que não interfira em suas vidas pessoais não deveriam escolher uma escola cristã (1998, p. 102).
Há ainda uma área em que o recebimento de filhos de pais não cristãos pode levantar objeções. Um dos desejos dos pais crentes ao fundar ou ao colocar seus filhos numa escola cristã é o de protegê-los das influências mundanas, das más companhias, e esse é um desejo justo. E talvez por isso, muitos pais podem vir a objetar quanto ao recebimento de crianças que eles consideram más companhias para seus filhos. A Bíblia também o apóia em textos como o de II Coríntios 6:14-18:
Não vos ponhais em jugo desigual com os incrédulos; pois que sociedade pode haver entre a justiça e a iniquidade? Ou que comunhão, da luz com as trevas? Que harmonia, entre Cristo e o Maligno? Ou que união, do crente com o incrédulo? (…) Pois nós somos santuário de Deus vivente, como Ele próprio disse: ‘Habitarei e andarei entre eles; serei o seu Deus, e eles serão o meu povo. Por isso, retirai-vos do meio deles, separai-vos, diz o Senhor; não toqueis cousas impuras, e eu vos receberei.
Jay Adams (1982) responde a essa objeção apontando para outra direção, olhando para a questão de outra perspectiva. Ele olha do ponto de vista de que os filhos devem ser criados para o mundo, no sentido de que eles um dia precisarão sair do casulo e da proteção do lar e da escola cristã e precisarão aprender a ser firmes e a serem crentes exemplares num ambiente hostil. E a existência de crianças filhas de pais não cristãos poderia ser um modo de treinar as crianças a lidar com essas questões, a serem obedientes, e fugirem das más companhias, e isso tudo sob supervisão e com cuidado para que elas não sejam expostas a tentações que seu nível de maturidade não é capaz de enfrentar.
Noel Weeks, continuando sua exposição, fornece uma resposta teológica à objeção levantada. Ele recorre à doutrina da fonte ou da origem do pecado, de que o pecado está no coração da criança e cita textos como o de Provérbios 22:15: “a estultícia está ligada ao coração da criança” e o de Marcos 7:21: “Porque do interior, do coração do homem procedem os maus desígnios”. Se isso é verdade, ele conclui que “a tentativa de proteger a criança pela exclusão dos não-cristãos é vã. Não é a exclusão de outros de protege a criança. É a verdade de Deus que combate as propensões da natureza pecaminosa.” (1998, p. 105).
De maneira sábia e bem-equilibrada ele prossegue propondo um meio-termo:
Conhecendo as propensões pecaminosas da natureza pecadora da criança, estamos preocupados em que a criança não seja exposta a problemas e tentações que estejam além do seu nível de maturidade espiritual. Assim, não concordamos com aqueles que vêem a separação como a solução para o problema do pecado na criança. Tampouco concordamos que a criança deva ser indiscriminadamente exposta à tentação.
Na prática, isso significa que nós não excluímos uma criança apenas porque ela pode ser uma má influência. Toda criança é uma má influência em potencial. Excluiremos aquela criança que represente tentações que estão além do nível de maturidade das demais. (1998, p. 105).
Na realidade, Weeks afirma que a criança filha de um lar cristão pode se beneficiar das habilidades diversas, por exemplo, acadêmicas, de uma criança não-cristã, visto que a pedagogia reformada postula que toda criança é rica em habilidades que procedem do fato de serem criaturas de Deus. E estas, por sua vez, podem também ser beneficiadas com o comportamento exemplar que deveria predominar num ambiente de crianças que temem ao Senhor. Quanto aos problemas que certamente surgirão, eles surgirão num contexto em que podem ser tratados da perspectiva da Palavra de Deus pelos professores cristãos.
Não podemos afirmar que nossas escolas não enfrentarão problemas morais. O que podemos afirmar é que nossa política é a de tratá-los dos termos da Palavra de Deus. E até isso fornece um bom exemplo para as crianças à medida em que elas mesmas aprendem a aplicar a Palavra de Deus ao homem. (1998, p. 105).
Todas essas questões concernentes à admissão de crianças não-cristãs na escola cristã constitui uma alternativa à posição que defende que a escola cristã deveria ser apenas para os filhos de pais cristãos. Embora se reconheça que a primeira posição seria ideal, como o ideal seria que se vivesse em um mundo somente de cristãos verdadeiros, é preciso entender que esse mundo não existe enquanto não for restaurado o Paraíso. O fato é que o estabelecimento de uma ou outra política de admissão de alunos não é uma ordenança determinativa sobre a qual a Bíblia dá determinações definitivas, mas sim que constitui uma ordenança normativa que cada grupo de pais e educadores cristãos terão de discutir e analisar de acordo com o contexto em que a escola está inserida, sempre procurando aplicar os princípios normativos que a Palavra de Deus oferece, aliado ao bom-senso cristão e buscando em Deus sabedoria para tratar biblicamente de todas essas questões, desde suas bases filosóficas às suas aplicações educativas mais práticas.
9.5 Disciplina
Uma marca essencial da educação e da escola cristã refere-se à importância da disciplina no contexto escolar, seu fundamento bíblico e a maneira como esta é exercida.
O fundamento bíblico da disciplina remonta às doutrinas do pecado e da necessidade de que ele seja restringido. A disciplina cristã é baseada no ensino bíblico que afirma que Deus confere autoridade a determinadas pessoas, como aos pais, no âmbito do lar, à autoridade civil, no governo civil, e aos administradores nas diversas instituições sociais, como é o caso da escola, para que sejam obedecidas e respeitadas como instrumentos escolhidos de Deus para a manutenção da ordem e punição do erro. As autoridades, portanto, precisam ser obedecidas e respeitadas desde que elas não ultrapassem ou contradigam as leis de Deus, o Soberano Senhor. E quem desobedece precisa ser sofrer as conseqüências da desobediência, através da disciplina punitiva.
Esse base bíblica da disciplina, fundamentada no princípio da autoridade, que precisa estar bem claro e ser ensinado às crianças, especialmente aos adolescentes, que são mais tendentes a questionar e a se rebelar com o exercício da disciplina, é demonstrada por Beeke [2003?] da seguinte maneira:
Deus é a Autoridade última. Ele é o Criador, Senhor e Rei de toda criação, inclusive de todos nós. Portanto, Ele tem o direito de reinar sobre nós e sobre todas as coisas. Ele também sabe o que é melhor para nós e para todas as suas criaturas. Deus revelou sua vontade na sua Palavra, a Bíblia. Sua Palavra tem força de lei para nós; suas verdades são verdades absolutas. Aquilo que a Palavra de Deus proclama ser verdade, é verdade; e o que ela declara ser errado, é errado, independentemente de que nós ou qualquer outra criatura concordemos ou não. Deus e sua Palavra são a fonte última e absoluta dos certos e errados.
Para regular as questões nos assuntos humanos, entretanto, Deus delegou autoridade a pessoas para governarem as quatro esferas da vida humana. Deus escolheu os pais para governarem suas casas; os oficiais e ministros para as igrejas; as autoridades civis para o governo civil e administradores para cada instituição – escolas, negócios, organizações, etc. Entretanto estas posições são de autoridade delegada, não absoluta. É importante para os jovens entenderem que seus pais e professores são responsáveis diante de Deus sobre como usam a autoridade que lhes foi concedida para governar suas casas e salas de aula. Eles não podem governar como querem; eles são chamados para governar como Deus quer. Eles estão em posições de autoridade delegada, não absoluta. Tente ajudá-los a entender que você, como professor ou pai, está também sob autoridade; que vocês também devem ser obedientes a uma autoridade, ou seja, a Deus e a sua Palavra. (p. 240-241)
A educação cristã vê a disciplina, a existência de regras e normas bem estabelecidas e o papel das autoridades e do governo não como um obstáculo à expressão e a liberdade das crianças, mas como um meio dado por Deus para garantir a liberdade individual e o bem social. A Bíblia considera que as pessoas, se deixadas à sua própria vontade, são egoístas, más, violentas por natureza, e o pecado precisa ser tolhido. Beeke fornece um exemplo muito interessante de como a lei e a disciplina têm o papel de garantir a liberdade:
Imagine nossa autoridade civil decretando que todos as leis de trânsito deixariam de existir amanhã. Não haverá mais sinais de trânsito, de parada obrigatória ou de limite de velocidade. Uma completa liberdade na direção será concedida. Cada um poderá dirigir como quiser. Não haverá nenhuma autoridade para estabelecer ou fazer cumprir qualquer regulamento de trânsito. Vocês podem imaginar o que aconteceria? Com a remoção desta autoridade e o caos resultante, nossa liberdade de dirigir com segurança estaria perdida. Boas leis de trânsito e sua consistente obrigatoriedade asseguram nossa liberdade de usar nossas estradas com segurança. ([2003?], p. 241).
Com base nesse princípio de que as crianças são pecadoras, e de que a autoridade é instrumento de Deus para a liberdade e para o bem comum, a escola cristã não considera que seja bom para as crianças deixá-las fazer o que desejam. Algumas vezes, a vontade deve ser quebrada, beneficiando tanto as crianças que sofrem a disciplina, pois aprendem a ser subjugadas e a obedecer, quanto as outras, pois serve de exemplo e de prevenção, fazendo com que os demais temam, sendo também imprescindível à liberdade social.
Mas em sua exposição sobre a disciplina cristã, Beeke lembra que a disciplina não tem somente este caráter negativo, de punição. Na verdade, a palavra disciplina provém da palavra discípulo, e aponta para a sua real natureza: as crianças devem ser discipuladas. Ora, um discípulo é aquele que segue o seu mestre, não somente que recebe o conhecimento, mas alguém que segue as instruções e o exemplo do seu mestre. O autor realça o sentido e a abrangência da disciplina:
Como pais e professores devem disciplinar seus filhos ou alunos? Eles devem “discipulá-los”; treiná-los a seguir, a abraçar, a seguir, o caminho que lhes é ensinado. Isto, é claro, suscita a questão pertinente sobre quem ensina e quais são os ensinamentos. Os ensinamentos de uma escola revelam sua “religião”. Uma escola humanista discipula seus alunos no humanismo; uma escola cristã, no cristianismo. Uma disciplina humanisticamente, a outra, cristãmente. Como professores cristãos, devemos discipular nossos alunos no caminho e na verdade de Deus, na sua Palavra. Devemos discipliná-los como Deus gostaria que o fizéssemos – a semelhança de Cristo. ([2003?], p. 240).
A disciplina deve ser tanto preventiva, através do ensino e do estabelecimento claro do que se requer dos alunos e das conseqüências da desobediência, como corretiva, a fim de que as crianças entendam que a desobediência desagrada a Deus e portanto deve ser punida. A disciplina preventiva aponta para a necessidade da instrução bíblica. Parte-se do princípio de que a instrução no bom caminho é um meio de evitar que as pessoas se desviem dele, como é indicado em versos bíblicos como o de Provérbios 22:6: “Ensina a criança no caminho em que deve andar e ainda quando for velho, não se desviará dele” e o de Efésios 6:4: “E vós, pais, não provoqueis vossos filhos à ira, mas criai-os na disciplina [punição bíblica] e na admoestação [instrução bíblica] do Senhor.”
A disciplina preventiva tem como alvo principal deixar bem claro o que é certo e o que é errado de acordo com a Lei de Deus, e como essa lei é aplicada nas regras específicas da escola. A educação cristã tem a obrigação de ensinar, por exemplo, que o oitavo mandamento “Não furtarás” (A BÍBLIA…, Êxodo 20:15) também significa que não se deve roubar as idéias e as palavras de outros, que não se deve “colar”. A disciplina preventiva deixa claro o que é valoroso, nobre e agradável a Deus e o que se espera dos alunos, e porque isso é esperado deles, através de regras consistentes, instruções claras e biblicamente bem-fundamentadas e o conhecimento da punição que segue a desobediência.
Mas, mesmo com toda a instrução apropriada, com o que se espera diminuir grandemente a necessidade da punição, a constatação de que os alunos são pecadores e que só a instrução não basta, demonstra a necessidade da administração da disciplina corretiva. A disciplina cristã não consiste de ameaças vazias ou de regras inconstantes e mutáveis, mas deve ser administrada com firmeza e consistência, com amor e zelo, buscando correção, não retaliação, e deve ainda ser acompanhada por bons exemplos. Uma observação feita por Comênio sobre o assunto da disciplina é importante de ser lembrada aqui. A disciplina cristã deve ser mais severa não no que se refere “ao estudo e às letras, mas aos costumes, porque, se estiverem bem organizados, os estudos constituirão por si mesmos um prazer para as mentes, e, pelo prazer que proporcionam, atraem e arrebatam todos” (COMÊNIO, 1997, p. 312).
Certamente que é necessário distinguir-se entre comportamentos acidentais e comportamentos que provém de intenções más do coração. A disciplina não pode ser a mesma para a criança que, brincando de jogar terra no colega, suja a farda do outro, e para outra que, revoltada com alguma proibição do professor, bate nele raivosamente. Também a disciplina mais dura deve ser exercida contra hábitos e atitudes pecaminosas em si, não porque o aluno errou na tabuada, ou tirou nota baixa em um teste. Comênio chega a estabelecer graus de severidade da punição de acordo com a gravidade do pecado:
Mais rigorosa e severa deve ser a disciplina para com os que atentam contra a moral: 1) para os pecados de impiedade, como blasfêmias, obscenidades, atos de qualquer tipo contra a lei de Deus; 2) Para a arrogância ou a maldade premeditada, como quando se desprezam as ordens do preceptor ou de algum superior e não se faz deliberadamente o que se deveria fazer; 3) para os pecados de soberba e de altivez, ou mesmo de inveja e preguiça, como quando alguém se recusa a ajudar o companheiro que lhe pede alguma explicação.
Os pecados do primeiro tipo ofendem a majestade de Deus; os do segundo tipo destroem as bases de todas as virtudes (que são a humildade e a obediência); os últimos detém ou retardam a possibilidade de fazer rápidos progressos no estudo (COMÊNIO, 1997, p. 313-314).
O objetivo claro e o alvo da disciplina cristã é também descrito por Comênio:
“A essência das coisas que dissemos e que devem ser ditas é que a disciplina deve tender a formar, a reforçar e a favorecer sempre nos jovens que educamos para Deus e para a Igreja uma harmonia de sentimentos semelhante àquela que Deus quer para seus filhos, que são confiados à escola de Cristo, para que exultem com tremor (Sl II, 10) e busquem a salvação com temor e tremor (Fp II,10), para que se regozijem sempre no Senhor (ibid., 4), vale dizer, para que possam e saibam amar e reverenciar os que educam, não apenas se deixando conduzir aonde convém, mas desejando-o ardentemente. Essa harmonia só pode ser obtida pelos modos acima indicados, ou seja, com bons exemplos, com palavras doces e com afeto pleno e sincero, reservando-se raios e trovões apenas para casos excepcionais, e sempre com a intenção de que a severidade seja uma manifestação de amor” (COMÊNIO, 1997, p. 315-316)
Numa palavra, a disciplina deve tender a “estimular a reforçar com a constância e a prática, em todos e em tudo, o respeito a Deus, a dedicação ao próximo e o entusiasmo pelos trabalhos e os deveres da vida” (COMÊNIO, 1997, p. 314).
9.6. Níveis de Ensino
Haveria um nível de ensino específico ou mais apropriado para o início ou para o término de uma educação cristã reformada? É o ensino reformado um empreendimento apenas para atingir as crianças bem jovens e colocar nelas certos princípios morais? Ou seria a educação reformada uma educação complexa e dada a discussões acadêmicas mais apropriada aos níveis mais avançados, especialmente para a universidade?
A resposta unânime dos educadores reformados é que ela deve buscar ser um empreendimento que vá do jardim da infância à universidade, e aqui estamos entendendo educação no sentido amplo, como começando no lar. Não estamos aqui defendendo que os pais crentes são obrigados a ingressar seus filhos numa escola cristã em sua mais tenra idade. Pelo contrário, se os pais, verdadeiros responsáveis pela educação de seus filhos, tiverem condições de oferecer-lhes uma educação cristã em casa até o tempo que considerarem que a criança já está numa idade mais madura para deixar o lar e adentrar no ambiente escolar, estariam fazendo um bem muito maior a seus filhos do que se considerassem que a partir de 2 ou 3 anos de idade, a responsabilidade pela educação de seus filhos passa a ser de uma instituição escolar.
A idéia é que, seja no lar, seja na escola, a educação cristã reformada deve ser desenvolvida e aplicada de maneira consistente por toda a vida do indivíduo. Muitas vezes, os esforços aplicados nos primeiros anos de vida da criança em prol da formação de um caráter cristão são perdidos, pois, por falta de um ensino reformado nos níveis superiores, o jovem passa a ter contato com as filosofias e práticas educacionais anti-bíblicas quando ainda não está maduro para manter-se firme na verdade, e ele acaba se contaminando com elas, seja no ensino médio, seja no ensino universitário, marcado pela pretensa superioridade científica e negação do Evangelho. O caminho oposto também acontece: é muito difícil educar um jovem nos preceitos cristãos quando ele não aprendeu a pensar e agir cristãmente em sua vida educacional prévia.
Gordon Clark (1987 apud ROBINS, 1987) apresenta uma filosofia de Educação Reformada coerente que deve guiar “não apenas a universidade, mas também o jardim da infância. O propósito da educação é… homens crentes. Guiados pela filosofia cristã, o jardim da infância como a universidade, têm como alvo ensinar o amor da verdade e de Deus nas mentes dos jovens”.
Por isso também que no decorrer da história da educação reformada, constata-se a importância que os pensadores e educadores reformados deram à educação em todos os níveis escolares. Os reformadores enfatizaram tanto a educação elementar e a alfabetização como a criação de escolas secundárias de gramática e se empenharam em incentivar o estabelecimento de universidades reformadas. Os puritanos foram os implementadores da educação universitária reformada na Europa e nos EUA. Comênio propôs em sua Didática Magna um currículo cristão que compreendia desde a educação infantil ao Colégio da Luz, que corresponderia à atual formação superior. Comênio, ao estabelecer 4 tipos de escolas, a saber, a escola materna, para a infância, a escola vernácula pública, para a meninice, a escola latina, ou ginásio, para a adolescência, e a Academia para a juventude, que fossem uma continuação e progressão da educação cristã, no sentido de que os estudos iriam se aprofundando e novas habilidades sendo introduzidas de acordo com as facilidades da idade do aluno. Todas as etapas eram imprescindíveis, como se lê:
(…) na escola materna devem ser exercitados sobretudo os sentidos externos, para que os alunos se habituem a usa-los de maneira correta para o conhecimento dos objetos. Na vernácula, exercitam-se os sentidos internos, que são a imaginação e a memória, e seus órgãos respectivos, que são a mão e a língua: lendo, escrevendo, pintando, cantando, contando, medindo, pesando, aprendendo de cor, etc. No ginásio formam-se a inteligência e o juízo sobre todas as coisas captadas através dos sentidos, com o uso da dialética, da gramática, da retórica e de todas as outras ciências e artes ensinadas segundo o “como” e o “porquê”. As Academias, enfim, formarão as coisas que pertencem à vontade, ensinando a manter as faculdades em harmonia (e a restabelecer a harmonia daquilo que dela se afastar), possibilitando o estudo da teologia no que se refere à alma, da filosofia no que se refere à mente, da medicina no que se refere às funções vitais do corpo, da jurisprudência no que se refere aos bens externos. (COMÊNIO, 1997, p. 321)
A educação cristã, se for bem dada em todos esses níveis, pode ser comparada, como descreve Comênio, ao cultivo de pomares, demonstrando a importância de essa educação ser exercida desde a infância à juventude:
As crianças de seis anos, bem preparadas pelos pais e pelas amas, são semelhantes às arvorezinhas plantadas com perícia, que têm raízes bem desenvolvidas e já começam a emitir os primeiros ramos. As crianças de doze anos são semelhantes às árvores que já têm ramos e gemas: o que produzirão ainda não está claro, mas logo estará. Os adolescentes de dezoito anos, que já sabem as línguas e as várias artes, são semelhantes às árvores floridas, que oferecem aprazível espetáculo e odor agradável, prometendo frutos suculentos. Finalmente, os jovens de vinte e quatro ou vinte e cinco anos, completamente formados pelos estudos universitários, parecem-se árvores carregadas de frutos, que já podem ser colhidos e utilizados de vários modos. (COMÊNIO, 1997, p. 323)