Esta postagem faz parte da dissertação “Fundamentos Históricos e Filosóficos de uma Educação Bíblico-Reformada”, Parte 1: Educação Reformada: Uma Visão Histórica”. Trata-se de um breve histórico da Educação Reformada, desde as suas raízes – que remetem à vida e a obra de Cristo e da primeira igreja cristã apostólica – até uma visão panorâmica da educação reformada em diversos países no mundo atual. A segunda parte desta monografia, sobre os “Fundamentos Filosóficos da Educação Reformada” pode ser encontrada neste blog, na seção de “Filosofia da Educação”. Os capítulos sobre os Fundamentos Históricos da Educação Bíblico Reformada estarão listados dentro da seção de História da Educação, possivelmente divididos em partes menores:
CAPÍTULO 1: A PRIMEIRA EDUCAÇÃO CRISTÃ
CAPÍTULO 2: A EDUCAÇÃO RELIGIOSA REFORMADA
CAPÍTULO 3: A EDUCAÇÃO REFORMADA NO SÉCULO XVII
Post 1: Uma Perspectiva Histórica da Educação Reformada no Século XVII e a Reforma Educacional de Comênio.
Post 2: O Pensamento Educacional dos Puritanos (Postagem Atual)
Post 3: Resultados da Educação Puritana: As Escolas Clássicas Cristãs e a Fundação das Universidades
CAPÍTULO 4: HERANÇA REFORMADA NA EDUCAÇÃO DOS PAÍSES PROTESTANTES
O leitor que desejar usar ou citar parte deste trabalho pode fazê-lo, desde que indique os dados bibliográficos da obra, abaixo:
ANGLADA, Karis Beatriz Gueiros
Fundamentos Históricos e Filosóficos de uma Educação Bíblico-Reformada/ Karis Beatriz Gueiros Anglada.
300 f.
Monografia (graduação) – Universidade do Estado do Pará. Centro de Ciências Sociais e Educação. Belém, 2004.
Área de Concentração: Educação
Orientador: Maria Betânia Barbosa Albuquerque.
1. Educação 2. Filosofia 3. Religião Cristã/Reformada
300 f.
Monografia (graduação) – Universidade do Estado do Pará. Centro de Ciências Sociais e Educação. Belém, 2004.
Área de Concentração: Educação
Orientador: Maria Betânia Barbosa Albuquerque.
1. Educação 2. Filosofia 3. Religião Cristã/Reformada
CAPÍTULO 3: A EDUCAÇÃO REFORMADA NO SÉCULO XVII
A CONTRIBUIÇÃO DOS PURITANOS
Os Puritanos na América |
O Pensamento Educacional dos Puritanos
Outro grupo do século XVII que levou adiante a obra da educação reformada foram os puritanos na Inglaterra. Para efeitos deste estudo, será utilizada a concepção de J. I. Packer: “o Puritanismo como uma atitude distinguidora começou com William Tyndale, contemporâneo de Lutero, uma geração antes de ser cunhada a palavra “Puritano”, e foi até o final do século dezessete, várias décadas depois que o termo “Puritano” havia caído do uso comum” (PACKER, 1992, p. 12). Embora o termo “puritano” seja conhecido e referido quase sempre com uma conotação pejorativa, ofensiva e de censura no decorrer da história, muitos são os estudiosos que têm recuperado a imagem convencional dos puritanos[1] e resgatado valiosas contribuições do puritanismo para a atualidade, em diversas áreas da vida.
A Supremacia das Escrituras |
O puritanismo foi parte do movimento de Reforma na Inglaterra e, mais que um movimento, deve ser entendido como uma mentalidade característica de um grupo de pessoas que desejava levar a obra da reforma protestante até às últimas conseqüências e aplicações práticas. No contexto da reforma anglicana, os puritanos não se deram por satisfeitos com a reforma inacabada que houve ali, e a partir das discussões a respeito das vestes clericais e das cerimônias, resquícios do catolicismo, foram levados ao questionamento da Igreja anglicana, e à busca por uma Igreja pura, verdadeiramente Reformada. Acabaram diferenciando-se dos anglicanos em vários aspectos, especialmente na defesa puritana da supremacia das Escrituras Sagradas sobre a tradição ou a razão.
Horton Davies apud Ryken (1992, p. 22) afirma que o “puritanismo começou com uma reforma litúrgica, mas desenvolveu-se numa atitude distinta em relação à vida”. De fato, ao buscarmos suas características marcantes, destaca-se primeiramente o puritanismo como um movimento religioso e um movimento de reforma completa da Igreja, dos países, das famílias, da educação, da vida. Mas o puritanismo estendeu-se a outras áreas, sendo marcado também por uma forte consciência moral, sendo central a questão do certo e errado, do que pertence ao reino de Deus ou ao reino de Satanás. O puritano Richard Sibbes (apud Ryken,1992, p. 26) expressou essa mentalidade assim: “Há dois grandes lados no mundo, ao qual todos pertencem: há o lado de Deus e aqueles que são seus, e há um outro lado que é de Satanás, e aqueles que são seus; dois reinados, dois lados, duas disposições contrárias, que perseguem uma à outra”. Foi também um movimento visionárioativado pela visão de uma sociedade reformada; e um movimento de protesto, como era o movimento protestante em geral. Pode ser também caracterizado como um movimento internacional, no sentido de ter tido influência em vários países europeus e na América do Norte. Ryken afirma também que “o sucesso do movimento dependeu definitivamente de ser um movimento leigo” (RYKEN, 1992, p. 27), sendo notável a vigorosa participação leiga, em conjunto com o significativo papel desempenhado pelos pregadores e professores puritanos.
O puritanismo foi um movimento fundamentalmente bíblico, em que a Bíblia foi colocada como autoridade final de crença e prática. Dentre suas principais doutrinas bíblicas estavam a soberania de Deus, a salvação pela fé em Cristo, a eleição por Deus das pessoas para a salvação, a irresistibilidade da graça de Deus e a depravação humana. Doutrinas como a da graça, da regeneração pessoal, o pacto, as doutrinas da criação e da providência de Deus, do chamado ou vocação de todos os crentes também foram determinantes do pensamento puritano.
O Puritanismo destacou-se ainda como um movimento erudito, o qual previa que a escola era um dos meios mais eficazes para a reforma religiosa, nacional e pessoal. Também pode ser considerado um movimento político e econômico na medida em que, “ao enfatizar os valores do trabalho, da poupança e do ganho honesto, os Puritanos criaram um clima que concordou bem com o crescimento do capitalismo, a despeito de haverem eles ou não realmente causado esta ascenção.” (RYKEN, 1992, p. 29)
Ao se considerar a contribuição dos puritanos para a educação, deve-se partir do fato de que todo o seu pensamento, incluindo o educacional, estava alicerçado e adequado à filosofia puritana de vida e decorria da prioridade de valores que colocava Deus acima de todas as coisas, a família acima do trabalho e a educação acima de riquezas materiais.
A Importância da Família na Educação |
Para que se entenda a posição educacional dos puritanos, faz-se necessária a compreensão de que eles propunham uma vida que refletisse sua religião na sociedade, e de modo particular na família. O propósito da família, que consistia na Glória de Deus e no bem estar daqueles ao seu redor (RYKEN, 1992, p. 87), e o resgate do papel bíblico dos cônjuges e do padrão de autoridade levou a atitudes revolucionárias referentes aos filhos, considerados nascidos para Deus e pertencentes ao pacto e às promessas, razão porque sua educação tornava-se uma obrigação solene e um serviço a Deus. Vale dizer que, “na visão dos puritanos, a educação cristã começa em casa e é, em última análise, responsabilidade dos pais. As escolas são apenas uma extensão da instrução e dos valores dos pais, não um substituto para eles” (RYKEN, 1992, p. 172).
De sua dedicação e valorização da educação dos seus filhos, os Puritanos desenvolveram princípios considerados progressistas em relação ao desenvolvimento da criança. Um deles é a importância do treinamento precoce. John Cotton apud RYKEN (1992, p. 97) escreveu que “estes bebês são flexíveis e facilmente dobráveis; é muito mais fácil educá-los nas boas coisas agora, do que na sua juventude e nos anos mais maduros”. Outro princípio creditado aos puritanos é o ensino mais pelo exemplo que pelas palavras, especialmente da parte dos pais. De acordo com o puritano Richard Greenham: “Se os pais querem seus filhos abençoados na Igreja e na escola, que cuidem em não dar a seus filhos qualquer exemplo corrupto em casa por causa de qualquer imprudência, profanação ou falta de santidade. Doutra forma, os pais lhe farão mais mal em casa do que os pastores e professores poderão lhes fazer bem fora.” (GREENHAM apud. EMERSON, 1968, p. 151-152).
A Educação na Família |
E um terceiro princípio puritano é o de que a educação precisa equilibrar a disciplina e o encorajamento: “a educação eficaz das crianças tem dois lados: um negativo, outro positivo. Os pais devem dobrar a vontade de uma criança, mas nutrir e encorajar seu espírito” (RYKEN,1992, p. 98). Enquanto se faz necessária a correção dos filhos e a disciplina contra o egoísmo, a desonestidade e maneiras anti-sociais, os pais devem nutrir amor e afeição pelos filhos na construção de uma auto-imagem e qualidades amáveis de uma criança, prezando sempre o equilíbrio bíblico entre a severidade e a bondade.
É possível verificar e indicar, a partir dos escritos puritanos, como os ideais da reforma pregados pelos puritanos influenciaram a sua filosofia de educação, especialmente em seus reflexos sobre o currículo.
Uma das características da educação puritana foi a defesa de uma aprendizagem que não opunha a fé à razão, mas via estas instâncias como complementares. Contra o anti-intelectualismo de grupos religiosos contemporâneos dos puritanos, estes promoveram especialmente a valorização da razão em assuntos religiosos, de maneira que Ryken comenta o fato de que “a fé puritana na autoridade da Bíblia não os levou a menosprezar a razão como irrelevante” (1992, p. 162), ao contrário, defendiam que “a fé é baseada no conhecimento” (WILLARD apud. RYKEN, 1992, p. 169) e que a razão e o conhecimento, embora corrompidos pelo pecado, são válidos desde que são instrumentos para se chegar a verdade.
Em contrapartida, destaca-se “uma aversão incomum à ignorância, especialmente em assuntos religiosos” (RYKEN, 1992, p. 170), refletida no temor de que as gerações seguintes não fossem bem equipadas para o ministério das igrejas e da concepção como a de William Perkins, de que “onde reina a ignorância aí reina o pecado” (RYKEN, 1992, p. 170). A mente educada, portanto, era valorizada acima de outros bens e riquezas materiais. O puritano John Milton, ao terminar a Universidade, ofereceu este tributo a seu pai:
John Milton e suas obras |
Pai, não me mandaste ir onde o caminho largo se abre, onde o dinheiro escorre mais facilmente às mãos, e a dourada esperança de acumular riqueza brilha forte e certa (…), desejando outrossim, que minha mente fosse cultivada e enriquecida (…). Que maior riqueza um pai poderia ter dado (…), embora tivesse dado tudo menos o céu? (MILTON apud. RYKEN, p. 171).
A mente reformada e a concepção de reforma dos puritanos também refletiu-se na definição e propósito que estabeleceram para a educação cristã. A definição clássica de educação foi dada por John Milton, no seu tratado Da Educação: “O fim então da aprendizagem é reparar as ruínas de nossos primeiros pais, recuperando o conhecer a Deus corretamente, e a partir deste conhecimento amá-lO, imita-lO, ser como Ele.” (MILTON apud RYKEN, 1992, p. 173).
O foco, portanto, do educador John Milton, não está no que a pessoa sabe em termos de conteúdos, nem pode ser medido por diplomas ou trabalhos realizados, mas a ênfase é posta no que a pessoa pode vir a ser. Como não há nada mais importante para a educação puritana que o relacionamento da pessoa com Deus, a educação é o constante restaurar da imagem de Deus no homem, grandemente perdida na queda e grandemente recuperada no processo da santificação. Se com uma educação apropriada é possível o crente vir a conhecer mais a Deus, amá-lo mais e conformar-se a seu ser e a suas verdades, educar uma pessoa significa, como sugere Ryken, fazer dele ou dela um melhor cristão (1992, p. 173).
Quanto ao propósito da educação, constata-se que o objetivo puritano primeiro e mais importante era o espiritual: para as massas, a educação lhes dava a base para o entendimento da Bíblia e da teologia que proveria para seu bem estar eterno; para os líderes, seria de grande benefício que fossem estes bem-educados e piedosos. De modo geral, a educação puritana visava a nutrição e o crescimento espirituais dos alunos como meios para a promoção da Igreja e para a glória de Deus, pois este era o fim de toda a sua vida. Ryken comenta que os puritanos certamente se chocariam com uma educação secular destituída do propósito religioso, seu ingrediente mais essencial. Essa opinião é expressa por Cotton Mather:
Antes e acima de tudo, é no conhecimento da religião cristã que os pais devem educar seus filhos (…). O conhecimento de outras coisas, embora seja empreendimento tão desejável para eles, nossos filhos podem chegar à felicidade eterna sem ele. Mas o conhecimento da santa doutrina nas palavras do Senhor Jesus Cristo é um milhão de vezes mais necessário a eles. (MATHER apud. RYKEN, 1992, p. 172).
Contudo, além desse objetivo fundamental, três mais podem ser estabelecidos: um estava relacionado ao treinamento vocacional das massas, para que todo o povo pudesse contribuir para o reino de Deus com a sua vida e seu trabalho da melhor forma possível. Tal aspecto deriva da doutrina puritana de que todos têm um chamado na vida, e que não se pode dissociar o âmbito da vida sagrado e o secular, pois todos as vocações são um culto a Deus, e todo crente, um sacerdote. Havia ainda o objetivo civil, visando preparar as pessoas para a vida dentro do país, de conformidade com as suas leis e necessidades políticas. E os puritanos enfatizavam ainda o propósito cultural da educação, de perpetuação do conhecimento, da literatura clássica e teológica.
Os propósitos e objetivos da educação puritana se expressavam no currículo das escolas cristãs. O currículo centraliza-se na Bíblia, que não somente era exaustivamente estudada em suas línguas originais e constituía a fonte de todo entendimento e doutrina, mas era o parâmetro a que deveriam ser submetidos os outros ensinos e escritos pagãos. Em seguida estavam as artes liberais, que propunham formar as pessoas para tudo, sendo este também o ideal da educação puritana.
Na tradição reformada de que os puritanos são parte, a educação não era completa se incluísse apenas estudos religiosos, mas a sua visão integrada do sagrado e do secular levava-os a valorizar o ensino de todas as artes e ciências como necessário à formação de todos os indivíduos e capaz de fazê-los mais úteis em qualquer que fosse sua profissão. A Bíblia e a natureza são os dois livros nos quais Deus se revela ao homem e em virtude disso os estudos teológicos e científicos necessariamente teriam de andar juntos, complementar-se e conduzir ao mesmo fim do conhecimento de Deus.
A Integração das Disciplinas no Currículo Puritano |
Essa visão tão peculiar de educação cristã, que propunha o equilíbrio entre o religioso e o secular, e que permitiu aos puritanos e reformados o estudo completo das ciências e de todos os autores não-cristãos, foi possibilitada pela revolucionária crença, afirmada pelo puritano Richard Sibbes: “A verdade vem de Deus, onde quer que a encontremos, e é nossa, é da igreja… Não devemos fazer destas coisas um ídolo, mas a verdade, onde quer que a encontremos, é da igreja; portanto, com uma boa consciência podemos fazer uso de qualquer autor humano” (SIBBES apud. RYKEN, p. 177).
A concepção de Deus como a fonte suprema de toda verdade, e da Bíblia e da natureza como os lugares onde as verdades de Deus se encontravam reveladas, leva ao que podemos chamar de “integração do conhecimento humano”, idéia captada numa tese da universidade de Harvard, de 1670, que descreveu as sete artes liberais como “um círculo de sete seções, das quais o centro é Deus” (RYKEN, 1992, p. 177). Isso lança luz sobre a perspectiva com que as disciplinas devem ser ensinadas na escola cristã. Ryken (1992, p. 177) observou que “desde que toda verdade é verdade de Deus, ela é, em última análise, uma. Os Puritanos então tinham um fundamento (a verdade de Deus) para ver a inter-relação entre todas as matérias acadêmicas”. Essa base aponta para as possibilidades de uma visão inter, multi e transdiciplinar do currículo, para usar uma linguagem moderna. O puritano Samuel Mather apud. Ryken (1992) se pronuncia especificamente sobre o assunto:
Todas as artes nada são, exceto os raios da Sabedoria do primeiro Ser nas criaturas, brilhando e refletindo daí sobre o espelho do entendimento humano; e como dEle vêm, assim a Ele tendem. Conseqüentemente há uma afinidade e parentesco de artes. Uma faz uso da outra, uma serve para a outra, até que todas O alcançam e a Ele retornam.” (p. 179)
[1] Dentre os quais podem ser citados Perry Miller, William Haller, Marshall Knappen, Percy Scholes, Edmund Morgan, além de uma série de pesquisadores mais recentes.
Karis, boa tarde. Primeiro, agradeço por compartilhar o conteudo. Segundo, onde posso ter acesso ao documento na integra?
Parabéns pelo trabalho!
Este comentário foi removido pelo autor.
Magnífico estudo! Tomarei como apoio em acrescentar meu conhecimento e assim sucessivamente devolver esta riqueza a educação do meu filho. Muito obrigada.