FASE 3 – O QUE ENSINAR?
ANALISANDO E SELECIONANDO CONTEÚDOS
Tendo tratado da importância da elaboração de um currículo distintamente cristão, academicamente sólido e adaptado à realidade de cada escola cristã, passamos a sugerir alguns passos lógicos que devem fazer parte dessa reforma curricular que desejamos: o primeiro passo foi definir, elencar e aplicar os princípios teológicos que embasam nossa visão de mundo bíblica, sejam eles sobre Deus, sobre o homem, sobre o conhecimento ou sobre o currículo. A segunda fase consistiu de pensar e a organizar objetivos educacionais gerais e específicos que sejam condizentes com os princípios bíblicos. E nesta fase 3 chegamos na parte que considero mais decisiva, mais desafiadora e mais criativa: a seleção dos conteúdos.
Agora é hora de pararmos para pensar. Essa fase deve ser lenta, pois ela exige tempo para que pais e educadores estudem e considerem bem o que desejam e precisam fazer; para que orem pedindo a Deus a Sua orientação e sabedoria; para que estudem e apliquem o que a Palavra de Deus diz sobre os objetivos e conteúdos da educação; para que pesquisem materiais e discutam o assunto entre si. Há de se levar tempo ainda para relacionar, em termos de prioridade, quais são os conteúdos e as habilidades que Deus exige que sejam desenvolvidos nos nossos filhos, os quais a escola deveria reforçar ou complementar ao ensino do lar.
Mas como definir quais são os conteúdos essenciais a um currículo cristão e de que forma essa seleção reflete a nossa visão de mundo em face dos currículos seculares? Quais são os eixos de conteúdos que definem a educação bíblica? Sabemos que o leque e profundidade do conhecimento da realidade é infinito para a mente humana, e que ele pode ser concentrado em inúmeras áreas e sub-áreas. Com quais destas áreas devemos nos preocupar? Com conhecimentos transcendentes ou científicos? Com as habilidades vocacionais ou com o desenvolvimento do pensamento lógico? Veremos à frente que há várias tendências curriculares mesmo entre os educadores cristãos, que enfatizam mais um ou outro aspecto entre o racional, o empreendorista, o científico, o histórico, e outros. Não obstante essas tendências, concordamos com o educador Cornelius Jaarsma (The Christian View of the School Curriculum. In: Fundamentals in Christian Education, p. 241) de que existem três eixos de conteúdos/habilidades principais com que a educação cristã precisa se preocupar. Este autor resumiu o conteúdo do currículo cristão como tendo estes elementos essenciais: a verdadeira piedade; a genuína cultura; e o serviço na vocação. Aproveitaremos esses termos nos comentários que temos a fazer a seguir.
Verdadeira Piedade: Instrução Espiritual e Moral nas Verdades da Palavra de Deus
A tarefa principal aqui é traduzir os objetivos elencados em conteúdos, atividades e habilidades que precisam ser ensinadas para que a criança atinja tais objetivos. A verdadeira piedade é o eixo vertical do currículo Cristão. E, para começarmos a selecionar os conteúdos que educam na piedade, precisamos partir do ensino da Bíblia. Se começarmos com a Palavra de Deus, veremos que ela enfatiza, por exemplo, a necessidade da criança aprender as leis morais de Deus, o que vai exigir um forte ensino das doutrinas e da moral cristã. Assim, os Dez Mandamentos e as demais leis de Deus que regem a nossa vida e toda a criação deverão ser ensinados, seja numa disciplina particular, ou dentro das disciplinas regulares. Se “toda a Escritura é inspirada por Deus e útil para o ensino, para a correção, para a educação na justiça” (II Tim 3:16), segue-se que todos os ensinamentos da palavra de Deus devem fazer parte do nosso currículo, e ensinados à medida que a idade da criança permita a sua compreensão: a criação, a queda, a história da redenção, a história do dilúvio e de suas consequências para o nosso mundo, a obra de Deus na história; a vida e a obra de Cristo; o ensino da Bíblia sobre o futuro. Não, essas coisas não fazem parte dos parâmetros nacionais, mas elas estão no primeiro plano da educação cristã.
Deus nos ordena também que “os louvores do Senhor, e o seu poder, e as maravilhas que fez” (Salmo 78:4) sejam ensinados à geração vindoura. Esse mandamento nos obriga a dar ênfase ao ensino da história dos grandes feitos de Deus. Não tanto, sugiro eu, começando com a história pessoal da criança, do seu bairro, cidade ou país, como fazem a maioria dos livros didáticos e currículos seculares, mas a ênfase bíblica parece cair numa visão abrangente da história do mundo, desde Adão e Eva até as profecias da segunda vinda de Cristo, passando pelos grandes acontecimentos da história da redenção, enfatizando a vinda de Jesus como o acontecimento crucial da história, e ensinando as crianças a verem o seu lugar e papel nesse grande arcabouço do plano de Deus para esse mundo e para a sua igreja.
A Palavra de Deus também afirma que o ensino e o exercício na piedade é mais proveitoso que o exercício físico. Por isso, a prática da piedade, entendida como as virtudes cristãs provenientes do temor do Senhor deveriam preceder em importância aqueles exercícios que são apenas para o corpo, como exercícios repetitivos para a coordenação motora, a prática de esportes e outras ênfases semelhantes. O desenvolvimento do caráter do aluno enfatizará muito mais os frutos do Espírito elencados em Gálatas 5 e a descrição que Jesus fez do cidadão do reino de Deus nas bem-aventuranças do que os jargões seculares da socialização, do respeito à diversidade, e dos “direitos da criança”. A ênfase bíblica no respeito à autoridade, por exemplo, e na criança como cidadã do reino de Deus em primeiro lugar, trará de volta aos nossos currículos uma versão cristã da verdadeira “educação moral e cívica”.
Além disso, temos o livro de Provérbios como um verdadeiro compêndio educacional que fornece uma série de temas que são essenciais à educação cristã das crianças na sabedoria proveniente do temor do Senhor. Eles enfatizam um leque tão amplo de virtudes cristãs, intelectuais e práticas, tratando, por exemplo, da valorização e aquisição do conhecimento e da sabedoria, da importância da obediência; de questões econômicas como a diligência no trabalho, o uso sábio do dinheiro; de questões sociais como o não se intrometer demais na vida dos vizinhos e fugir das más companhias masculinas e femininas; e mesmo de assuntos simples e práticos como a frugalidade na economia doméstica, o observar e cuidar dos animais, o tratamento sustentável da criação, e muitas questões semelhantes.
O Novo Testamento também está cheio de direcionamentos quanto ao conteúdo da educação cristã: O apóstolo Paulo, por exemplo, orienta os Filipenses que tudo quanto seja verdadeiro, respeitável, justo, de boa fama, seja isso o que ocupe o nosso pensamento (Filipenses 4:8). Essa lista certamente nos ajudará a julgar aquilo que pertence e o que não pertence ao nosso currículo. E quando lemos, no verso seguinte, “e o que também aprendestes, e recebestes, e ouvistes, e vistes em mim, isso praticai” (Filipenses 4:9), poderíamos pensar assim: como as crianças vão poder imitar e obedecer o ensino do apóstolo Paulo se eles nem sabem quem ele foi? Elas terão que aprender os livros e as histórias do Novo Testamento; terão que ter uma boa base literária o quanto antes que as capacite a ler e a interpretar corretamente a palavra de Deus. E quanto ao ensino do apóstolo Paulo em I Coríntios 6 sobre o cuidado do nosso corpo como templo do Espírito Santo? O que isso implica para o ensino de assuntos como Saúde e Nutrição? E quando ele diz que devemos ser capazes de fazer bons julgamentos em questões legais para ajudar nossos irmãos em Cristo? O que isso nos diz sobre a necessidade de estudos jurídicos e governamentais dentro de uma perspectiva cristã? Sim, insisto: comecem com a Palavra de Deus. O que ela tem a dizer sobre as nossas prioridades educacionais? Vocês verão que ela tem muito a contribuir para os próprios conteúdos curriculares.
Como já enfatizamos no princípio, a Palavra de Deus não só fornece conteúdos para o nosso currículo, como ela oferece alguns princípios teológicos que são muito úteis para nos nortear na seleção de conteúdos curriculares e na organização de cursos e disciplinas. O que faz um currículo cristão não é necessariamente a quantidade de assuntos e temas religiosos que incorporamos. O currículo é mais ou menos cristão à medida em que reflete e promove os princípios, as ênfases e as prioridades de Deus para a Educação Cristã. Agora seria uma boa hora de relermos sobre a nossa cosmovisão na Fase 1 e buscar ter sempre em mente esses valiosos princípios extraídos da Palavra de Deus. Como afirmou Jaarsma, o estudo do que a Palavra de Deus considera importante servirá como uma luz para o educador cristão.
Genuína Cultura: Buscando uma Educação Integral pela Ampliação do Leque do Conhecimento
O segundo eixo – o horizontal – do currículo cristão é o cultural. Jaarsma chama de “genuína cultura” o conjunto do produto cultural da humanidade que foi produzido de conformidade com a Verdade de Deus ou que está de acordo com essa verdade, ainda que esse conhecimento seja proveniente dos incrédulos. É nesse sentido que afirmamos que “a verdade, onde estiver, é nossa”. Mas sabemos que há também uma cultura falsa, mentirosa, enganosa, tendenciosa e perniciosa produzida pela humanidade que é antitética à verdade de Deus, e que não deve fazer parte do nosso currículo, a menos que seja como exemplo negativo ou como tema de análise crítica por alunos mais maduros. Contudo, é somente do produto cultural verdadeiro e genuíno da humanidade, no seu sentido mais amplo, que devemos selecionar os conteúdos curriculares que mais colaborarão para a formação de bons cidadãos do reino de Deus e de pessoas maduras, íntegras e tementes a Deus, perfeitas e perfeitamente habilitadas para servir a Deus e aos seus semelhantes no tempo e no lugar em que Deus as coloca.
Nesse sentido, parece-me que a grande necessidade de um bom currículo é, por um lado, expressar o leque mais amplo do conhecimento, ou seja, ensinar às crianças uma amostra bem representativa das verdades de Deus que têm sido descobertas e trabalhadas pela humanidade no decorrer de sua existência; e por outro, expressar o inter-relacionamento dessas verdades entre si e com Cristo. A Bíblia nos diz claramente que todos os tesouros da sabedoria e do conhecimento residem em Cristo, subsistindo nele, sendo unificados, centralizados e ultimamente explicados em Cristo. Não é à toa que os educadores seculares reclamam do problema da falta de unidade do conhecimento; mas nós temos em Cristo a chave dessa tão necessária unidade. A relação do homem e de cada tema estudado com Deus é o fator controlador na escolha do assunto. Todo corpo de assuntos organicamente relacionado deve ser consolidado pela verdade que emerge da fonte de toda sabedoria, Cristo. Assim, mesmo nas aulas de matemática, de ciências, de geografia, e de línguas, ou de educação física, nossos alunos deverão ser conduzidos ao estudo da Bíblia e das verdades de Deus relacionadas àquele assunto e à adoração a Deus constantes. De minha parte, ainda não encontrei um esquema mais útil para expressar essa noção da diversidade e da unidade da existência e do conhecimento do que aquele proposto pelo filosofo reformado holandês Herman Dooyeweerd, que incluí como Leitura Adicional nesse material, por sua vez extraída do artigo de minha autoria “A Contribuição de Herman Dooyeweerd para a Educação Reformada”.
A questão da ampliação do leque do conhecimento para que o ensino reflita a abrangência da nossa fé parece ser uma das grandes necessidades das escolas cristãs de nosso país, mais do que o acréscimo de “cultinhos devocionais” ou de disciplinas religiosas. A valorização de toda a verdade como sendo de Deus e o reconhecimento de que a educação tem como alvo formar a criança integralmente, e no contexto da sua vida, requerem que tenhamos uma idéia melhor da extensão do conhecimento. E ninguém pense que isso se exaure na totalidade do conteúdo do vestibular. Nem no conjunto dos mais variados cursos universitários existentes em nosso país, embora isso possa nos ajudar a ter uma idéia ampla das diferentes áreas do conhecimento. Deve-se lembrar que a educação em nosso país não tem se destacado pela sua qualidade, nem teve origens bíblicas; por isso podemos detectar problemas de ênfases unilaterais, (por exemplo, a valorização de certos cursos científicos e de profissões de prestígio em detrimento da valorização das artes, letras, e esportes; ou a priorização da geografia sócio-política em detrimento do conhecimento do mundo natural criado por Deus), havendo ainda áreas do conhecimento que são virtualmente inexploradas, desprezadas ou distorcidas, como a inexistência de cursos superiores de economia doméstica para mulheres, por exemplo, ou de cursos de administração, de história, de pedagogia, etc. cristãos).
Então, como é que fazemos isso? Como dar à criança uma idéia das várias dimensões do conhecimento? Normalmente, esquematizamos o currículo por meio das disciplinas tradicionais: matemática, estudo de uma ou mais línguas, ciências, geografia, história, escrita ou redação, arte e educação física, com ênfase maior na matemática e no português. Será que essas disciplinas são amplas o suficiente? Certamente, qualquer esquema como estes é útil, especialmente se tivermos uma visão mais ampla e compreensiva de cada uma delas. Por exemplo, de que a matemática deveria incluir noções de espaço, de extensão, de representação simbólica, de análise e distinção, de economia, de confiança nas leis e ordem colocadas por Deus neste mundo, além de ser sempre acompanhada, ou melhor, extraída, de situações e problemas práticos do dia-a-dia da criança. De que as línguas tratam da representação simbólica e objetivam a boa comunicação, e é para isso que se deveria estudar tanto as leis da gramática e da ortografia, como o aspecto analítico e as leis da boa interpretação, como ainda o uso formativo e criativo da linguagem, sem desprezar as noções da oratória e elocução, e dos princípios bíblicos do pensar cada palavra para a edificação, do refrear os pecados da língua. Ou ainda, de que as ciências incluem todo o relacionamento do homem com a criação, incluindo tanto o estudo da vida, do movimento, da velocidade, da matéria, da energia, do meio-ambiente, como as leis de Deus para o seu bom funcionamento, como hábitos de vida saudáveis, habilidade prática com animais e plantas, incentivo à exploração e novas descobertas em laboratórios e na engenharia, etc. Assim, devemos lembrar sempre que cada disciplina pode ser trabalhada em seu aspecto teórico e em suas aplicações práticas; em seu relacionamento com as leis de Deus e com as demais disciplinas, de maneira que elas podem ser sempre interessantes, enriquecedoras, complementares e formativas para a pessoa integral.
Na realidade, haveria um número infinito de disciplinas que poderíamos criar para os diversos níveis da educação cristã, mas pretendo mencionar alguns eixos curriculares essenciais para a educação cristã, extraídos dos nossos princípios de fé; e oferecer aos leitores uma idéia de nossas “disciplinas obrigatórias”, sejam quais forem as tendências curriculares adotadas.
1) Ênfase no Mundo Natural
Se, como temos dito, para sermos bons cidadãos desse mundo, é preciso que conheçamos nossa verdadeira herança cultural, juntamente com seu aspecto espiritual, segue-se que um eixo central do nosso currículo deve ser o estudo da natureza em seu sentido mais amplo, especialmente buscando ver como ela reflete os atributos do Criador. As muitas descobertas que têm sido feitas no campo das ciências naturais; a geografia, a biologia, a medicina, a geologia, a astronomia, todas fornecem assuntos importantes para o currículo que busca expressar a glória do Criador através da variedade, sabedoria e beleza da criação. Nas séries inferiores, esses conteúdos todos normalmente são conhecidos como as Ciências Naturais. Esses conteúdos podem ser também usados como unidades ou eixos de ensino que são facilmente adaptáveis a várias séries, podendo ser temas unificadores da educação cristã, por exemplo, a partir do foco na criação. As coisas criadas por Deus em cada dia da criação podem ser ensinadas a todas as séries, de maneira cada vez mais complexa, e elas eventualmente irão abranger um curso completo de Ciências.
2) Ênfase na História Mundial
A história do mundo ocupa outro eixo central do currículo cristão, pois ela revela a sabedoria, a graça e o poder das obras da Providência de Deus. O estudo dos personagens, acontecimentos e descobertas da história da humanidade revelam o plano eterno de Deus e permitem que a criança comece a compreender o seu lugar e o seu papel neste grande esquema da realidade, além de fornecer exemplos positivos e negativos, de inspirar as crianças na verdadeira nobreza pelo conhecimento de verdadeiros heróis e de dar à criança uma noção da responsabilidade humana e das consequências de suas ações dentro do plano soberano de Deus. Essa disciplina incluirá o conhecimento e a interpretação de fatos históricos, a leitura de textos e de obras históricas originais, e o estudo de biografias e de histórias verídicas que permitam que a criança se insira na vida cotidiana de outros tempos e lugares. Algumas ficções baseadas em fatos reais como as obras excelentes de G. H. Henty, ou as de Lucille Travis, que conta, por exemplo, a história de uma menina israelita chamada “Tirzah”[1], que vive no Egito, na época de Moisés, são excelentes para fazer vívido, por exemplo, a realidade cotidiana do Egito Antigo e a História do Êxodo na mente das crianças. Inserir no currículo a leitura de ficções dessa natureza tem se provado uma maneira excelente de se ensinar história às crianças de maneira interessante, fácil, cativante e inesquecível, especialmente quando há carência de biografias verídicas de pessoas que viveram em um determinado período histórico.
Há ainda todo um apanhado de assuntos clássicos, ou seja, aquela literatura de caráter permanente, provado pelo tempo, que capta e reflete a verdade e a essência da natureza humana; sejam escritos da antiguidade, como o Épico de Gilgamesh, as fábulas de Esôpo, a história das antigas civilizações com suas descobertas; sejam do mundo medieval com seus costumes e organização própria, com destaque para os escritos dos pais da igreja, e leitura de obras originais como “a Cidade de Deus”, de Agostinho; sejam do mundo moderno, da história das mudanças e descobertas da renascença, especialmente em seu relacionamento com a reforma protestante, em que a criança aprenderá sobre a fé de Pascal e dos grandes cientistas… Todos esses conteúdos “clássicos”, de cultura geral, são sempre válidos e importantes e podem fazer da História uma disciplina envolvente e extremamente enriquecedora.
3) Ênfase Sócio-Instrumental
As línguas e a matemática constituem um terceiro eixo indispensável ao currículo cristão, especialmente pelo seu valor instrumental para a aquisição do conhecimento, para a vida prática e para o intercurso cultural. Por mais diferentes que sejam essas duas disciplinas, ambas são linguagens ou representações da realidade que nos ajudam a compreender, a gravar e a reproduzir conceitos e eventos; e ambas são baseadas em leis e regras bem definidas, sem as quais não podemos usar esses instrumentos apropriadamente. Embora essas disciplinas não pareçam embeber tanto os princípios da nossa fé, elas estão normalmente em primeiro plano também no currículo cristão, porque dependendo da proficiência do aluno nestes instrumentos ele será capaz de avançar no seu conhecimento de muitas outras áreas. Então, essas disciplinas ocuparão sempre um lugar privilegiado na educação especialmente nos seus primeiros anos, (as primeiras horas do dia, a maior carga horária do ensino fundamental) e isso deve ser assim, até que as crianças dominem essas linguagens e saibam aplicá-las na prática para conhecer melhor o mundo e as verdades de Deus em todas as demais áreas.
Pense também na necessidade que temos de preparar a criança para o presente e para o futuro, para a sua realidade, para o mundo tecnológico, globalizado, pós-moderno e ao mesmo tempo, como já foi dito, pós-cristão, que ela irá adentrar. Que conteúdos poderão melhor prepará-las para viver nesse mundo como cidadãs do Céu? Segundo De Jong, (Curriculum Making for the Christian School. In: Fundamentals in Christian Education. Eerdmans, Grand Rapids, p. 223), a criança precisa ser preparada socialmente para o seu próprio tempo, e isso deve ser feito por meio de muitos assuntos variados do currículo. Não no sentido de permitir que a mudança dos tempos afete a revelação, pelo contrário, mas porque a revelação divina contém uma mensagem para cada tempo, pelo que essas temáticas atuais devem ser introduzidas para inspirar a criança a servir a Cristo em seu dia, circunstâncias e idade.
Juntamente com essa base ética e moral, a educação cristã precisa também adaptar-se às necessidades práticas emergentes que as habilitem a atuarem produtivamente no mundo atual: a datilografia, a informática, orientações quanto à pesquisas online e a como lidar e fazer bom uso das novas tecnologias, a proficiência nas línguas universais da atualidade, o conhecimento das novas fronteiras tecnológicas, e do que a Bíblia tem a dizer sobre esses assuntos… De alguma forma, o currículo cristão, para formar um bom cidadão do reino de Deus nesse mundo, precisará incorporar também essas novas técnicas e habilidades.
Jaarsma sugere que devemos julgar os conteúdos segundo o critério social do crente como alguém que vive no mundo, mas não é do mundo. Para isso, devemos sempre unir a atividade cultural (resposta à natureza- Exemplo: cuidar do jardim, lavar a louça, planejar uma construção, tratar uma doença, conhecer os problemas do Oriente Médio) à atividade espiritual (resposta a Deus- Exemplo: O que Deus, na Sua Palavra, tem a dizer sobre cada um desses assuntos? E como podemos fazer essas coisas para a glória de Deus). Expressamos isso em termos da nossa cidadania celestial, e isso nos fornece a perspectiva em que abrangemos todo o aspecto sócio-cultural do nosso currículo.
Serviço Altruísta: Usando o Aprendizado para Servir ao Reino de Deus pelo Serviço nas Vocações.
Verdadeira Piedade. Genuína Cultura. E poderíamos acrescentar um terceiro alvo, e um terceiro eixo para nortear o currículo Cristão: O serviço do Reino, que abrangeria toda aquela aplicação dos conhecimentos e habilidades escolares que deve capacitar o aluno a servir de fato ao reino de Deus através do serviço ao próximo dentro das vocações individuais e das circunstâncias, lugares e tempo em que Deus coloca cada um na sua providência. A descoberta e o desenvolvimento dos dons individuais, a habilidade de ler e escrever sendo usada para alegrar um velhinho com as palavras da Bíblia ou para redigir uma carta a um amigo distante; o conhecimento geográfico servindo para estimular a propagação do Evangelho em lugares remotos; a habilidade física e da matemática sendo usada para reparar a casa de uma pessoa carente, o conhecimento biológico sendo usado para formar hábitos de vida saudáveis e prevenir doenças, ou para formar um excelente médico cristão; o conhecimento artístico sendo expresso em belas músicas ou pinturas que dão prazer e glorificam a Deus… esse é um ideal do currículo cristão que precisa ser buscado de maneira consciente e consistente em todas as disciplinas, em todas as aulas.
Tudo o que é aprendido deve estimular e capacitar a criança a querer usar esse aprendizado para o serviço útil nesse mundo, apesar dessa ênfase no trabalho e no serviço ao próximo ser tão depreciada e mesmo condenada em nossa época e especialmente em nosso país. A ênfase sócio-instrumental de que tratamos acima nos lembra dessa necessidade que a Bíblia nos impõe como cidadãos do reino de Deus nesse mundo. O nosso texto básico de II Timóteo 3 também ensina, no verso 17, que o propósito da educação não é meramente formar pessoas piedosas e eruditas, mas que: O homem de Deus (piedade), seja perfeito e perfeitamente habilitado (conhecimento e habilidades) para toda boa obra(serviço). Talvez não estaríamos exagerando se parafrasearmos o conhecido verso de Tiago dizendo que “a educação, sem obras, é morta”. O conhecimento que não é mostrado pelo nosso serviço e trabalho nesse mundo não pode ser verificado; é inútil. O autor de Eclesiastes considerou vaidade todo saber e enfado nos livros, mas deu repetido valor ao prazer, utilidade e frutos duradouros do trabalho (Ec. 3:13; 11:1-6; 12:13-14) Não há como nos esquivarmos da ênfase bíblica no serviço ao próximo dentro de nossa vocação e de nossa esfera de atuação, cabalmente ensinada e exemplificada pelo nosso Senhor: “Meu pai trabalha até agora, e eu trabalho também.” (João 5:17) Como Cristo usou seu conhecimento e poder para o serviço às pessoas! Como o dever de todo cristão é resumido em Miquéias 6:8 por obras como praticar a justiça, amar a misericórdia, e andar humildemente diante de Deus. Que o currículo cristão busque formar pessoas que dêem frutos como esses!
Assim, a criança da pré-escola que aprende a organizar e a classificar deveria ser estimulada a fazer isso para arrumar os talheres na gaveta ou para organizar os seus sapatos e brinquedos. A coordenação motora aprendida pode ser colocada em bom uso quando a criança é chamada para lavar louças ou fazer pequenos serviços no lar. A educação física deve ensinar não somente as regras do futebol, mas estimular que as crianças usem seu corpo para obedecer aos pais com habilidade, rapidez e uma postura que a capacite a fazer um serviço bem feito como lavar um balde ou um carro sem se cansar, e sem se machucar. E assim por diante. Imaginem o quanto uma criança que foi educada assim por toda a sua vida poderá ser capaz de fazer quando for jovem? Elas podem ser tão úteis à Igreja e à sociedade ao seu redor desde muito novas. Os jovens normalmente têm mais facilidades para adquirir e usar habilidades na área da informática e das novas tecnologias; elas deveriam sair da escola com idéias bem definidas e planejadas de negócios ou de projetos em que poderiam servir às necessidades ao seu redor, e principalmente, às necessidades da igreja de Deus.
Há educadores cristãos que vêem essa necessidade como tão primordial a ponto de organizarem todo o currículo em torno de projetos úteis como os que mencionei; tratarei um pouco mais dessa tendência num postposterior, defendida, por exemplo, por Jay Adams e pelo casal de educadores Raymond e Dorothy Moore. Mas sabemos que esse eixo deve ser mantido juntamente com os anteriores, e acredito que ele pode ser muito bem desenvolvido como um produto, aplicação ou mesmo como um foco dos conhecimentos espirituais e culturais que a escola está trabalhando. Piedade. Cultura. Serviço. Sempre tenham em mente esses três eixos básicos do currículo cristão.
Implementação da Proposta Curricular Cristã e Integral: Os Diferentes Modelos Curriculares
Uma opção que temos na montagem de nosso currículo é manter as disciplinas tradicionais, mas buscando enriquecê-las com os conteúdos desejados para a formação integral da criança. Outra opção é criar sub-disciplinas (Ex: incluir a oratória, a música, a informática, a metrificação das poesias, etc., como unidades ou temas recorrentes dentro do Português, ou a nutrição, a saúde, a culinária, a educação física, o papel de Deus para os gêneros, por exemplo, dentro das Ciências Biológicas).
Há ainda a possibilidade de criarmos novas disciplinas para atenderem especialmente ao propósito vocacional; por exemplo, a economia, (que deverá incluir as habilidades de planejamento e a administração frugal dos recursos, a formação de gerentes e líderes habilidosos), a sociologia cristã (a lei áurea, a independência do grupo, o estudo dos nossos deveres para com os próximos, a consideração do aspecto sensitivo de como lidar com as emoções próprias e dos outros), o conhecimento jurídico (das leis do país e de outros países comparadas às leis de Deus); a arte e a estética (a música, a poesia, as artes plásticas, a culinária, etc., em sua teoria e prática), a ética (que inclui o compromisso com causas nobres, o sacrificar-se pelos outros, a maneira bíblica de lidar com temas controvertidos da atualidade, etc.); uma “educação física” que vá além da prática de alguns esportes básicos, com toda uma base teórica e exercícios práticos para a boa postura, para a prevenção de doenças, etc., e uma disciplina talvez de “trabalhos manuais domésticos”, que ensine às crianças e jovens conhecimentos básicos e úteis sobre mecânica, encanamento e construção, a usar ferramentas, a construir com madeira e ferro, a decorar uma casa, a costurar, a fazer artesanato, a cuidar de roupas, a contabilizar lucros e gastos de um negócio, a fazer compras e cozinhar refeições nutritivas; todos esses assuntos que têm sido pouco explorados na educação secular de nosso país poderiam muito bem formar novas disciplinas (obrigatórias ou parcialmente optativas; por exemplo, a criança poderia optar por uma disciplina artística, seja música, seja arte, etc; ou os meninos poderiam escolher trabalhos manuais mais orientados para o uso de ferramentas e as meninas, os mais domésticos), ou ainda poderiam formar cursos especiais, intensivos ou de pouca duração.
Ainda outros currículos cristãos têm buscado a integralidade a partir da estrutura da educação clássica: eles focalizam nos primeiros anos (fase gramatical) as disciplinas instrumentais, como as línguas e a matemática, a imitação, a cópia e a memorização de leis e fatos e versículos importantes, o que seria um aprendizado mais natural, fácil e apropriado às crianças pequenas. A fase seguinte seria a racional, em que as crianças estão mais prontas a investigar o como e o porquê das disciplinas, na qual os fatos memorizados na primeira infância seriam explorados em disciplinas como ciências, história, geografia, arte, e etc. E numa terceira fase, já por volta do ensino médio, os jovens explorariam os temas que têm dominado de maneira mais artística, expressiva, e criativa, a partir de produção de textos e apresentações que focalizam a oratória, os debates e a beleza da expressão.
Há ainda currículos que buscam abranger os tópicos a partir de Unidades Tópicas (Unit Studies) que são adaptáveis à diversos níveis de ensino e que geram atividades nas mais diversas disciplinas. Essas unidades podem ser tiradas da história, das ciências, da geografia, etc., e elas são ideais para explorar as humanidades e as ciências em classes multiseriadas, tendo também a capacidade de integrar diversas disciplinas e habilidades a partir dos tópicos estudados. Como exemplo, citamos o currículo “Tapestry of Grace“, que trabalha história, literatura, geografia, ciências, arte e projetos úteis e outros temas a partir da história do mundo; e o material de ciências produzido por Jay Wile, “Science in the Beggining” que trabalha as ciências a partir dos dias da criação e que propõe atividades para diversas idades e disciplinas.
Trataremos da questão metodológica mais adiante, e de como o currículo cristão deve ou não fazer uso das metodologias educacionais vigentes ou passadas. Há uma variedade enorme de propostas cristãs para o currículo, especialmente na língua inglesa; algumas mais tradicionais, outras mais clássicas, outras mais vocacionais, e uma grande combinação destas. Há materiais mais voltados para a sala de aula escolar e outros mais para uma educação no lar ou fora do ambiente escolar; Há uma grande flexibilidade também para quem quer adaptar o currículo ao estilo de aprendizagem de cada criança e para as características das várias famílias, escolas, e sociedades. Há currículos cristãos mais ou menos centrados na Bíblia, mais ou menos rigorosos academicamente, e mais ou menos aplicados à vida. Mas o ponto que esperamos ter deixado claro nesta fase 3 de seleção de conteúdos é que um currículo cristão digno do nome precisa ser idealizado, montado e julgado com base nestes três eixos fundamentais: o ensino da piedade; o conhecimento da verdade de Deus nas mais diversas áreas; e a utilização do aprendizado para o serviço humilde e altruísta ao próximo.
Os próximos dois posts dentro dessa série sobre o currículo serão leituras adicionais que tratarão, o primeiro, da questão do desenvolvimento integral da criança de uma perspectiva cristã a partir da visão do filósofo reformado Dooyeweerd, que propôs um arcabouço muito interessante para nos ajudar nessa tarefa de elaborar um currículo integral; e o segundo explorará com mais detalhes três correntes curriculares que são usualmente adotadas por educadores cristãos, a saber, a tendência clássica, a vocacional, e a tradicional. Somente após lançadas e compreendidas essas importantes bases é que finalizaremos com sugestões práticas para a construção do currículo, com passos, cronogramas e com a discutida questão dos materiais didáticos. Espero que estejam gostando e desejando conhecer mais e buscar a elaboração de um currículo verdadeiramente cristão e mais apropriado para os nossos pequenos cidadãos do reino de Deus.
[1] Ver os livros de Travis, Tirzah e Timna; a série da história mundial de Susan Bauer, e as aventuras históricas de G. H. Henry.
Que texto rico!!! Estou muito grata por ter encontrado algo assim que há muito procurara…